16.7.10

A Rosa do Povo - Carlos DRUMMOND de Andrade

A poesia é diferente da história, do conto. Na história e no conto o autor 'te leva" a lugares, "te faz usar" usar a imaginação de uma forma teatral e até novelesca, como numa sala de cinema assistindo ao filme, com a liberdade das pausas e reflexões.
A poesia é deixar-se ver, verdadeira alma das palavras, numa sensibilidade que ultrapassa ao toque. E as vezes não só essa sensibilidade é participativa mas o que existe por detrás de todas as palavras.
Drummond é poesia inteligente, na primeira leitura faz sentir o "toque aveludado" da palavra, mas na segunda leitura a poesia que antes tinha toda uma beleza gramatical passa a fazer sentido cada estrofe, desvendando o mistério do "labirinto" interior que ela representa verdadeiramente.
Assim é no poema:

Os Últimos Dias

Que a terra há de comer.
Mas não coma já.

Ainda se mova,
para o ofício e a posse.

E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.

Sinta frio, calor, cansaço;
pare um momento; continue.

Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.

O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.

Prazer de balanço, prazer de vôo.

Prazer de ouvir música;
sobre papel deixar que a mão deslize.

Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.

Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra de chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.

O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.

De ver passar este conto: O vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada num instante,
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.

E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.

Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um torso
de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.

(...)

E a Tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resisti-lhe,
de outros vivem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.

Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?

A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esque-
                                                                      [cimento, amor,
ao fim da batalha perdida.

Esse tempo e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: Com sórdido ou potente clarão.
E todo mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não quero negando as outras horas nem palavras
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize,
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.

E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal no meu rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéias
                                              [de justiça, revolta e sono, adeus,
vida aos outros legada.

6 comentários:

katy disse...

oi bel, eu adoro poesia, mas faz um tempo que nós duas nos afastamos, mais por minha culpa do que por culpa dela. o que vc diz sobre estaros prontos para um determinado texto também vale pra poesia e ainda mais do que na prosa. a poesia é para poucos... bjsss e um excelente fim de semana.

Cris disse...

Katy e Bel, vocês têm razão e vi que agora não estou nem um pouco pronta para a poesia. Estou cheia de idéias pré-concebidas, dúvidas, etc. Comecei a ler 2 vezes e me perdi nas palavras. Mas sou brasileira e não desisto quase nunca. Vou dar um tempo e volto aqui para ler. Tenho várias coisas de Drummond em casa, e quase todas lidas. Sinal que estou apenas passando por uma má fase para poesia.

Isabel Dasp disse...

Gurias, eu entendo vocês, também passo por períodos de jejum na poesia, mas faço o seguinte: Quando leio algo, e tô no clima aproveito pra embalar com outros livros de poesia... Até porque normalmente a leitura tem que ser umas 2X. Beijos!

Cris disse...

Verdade. A compreensão da poesia muda sempre, de acordo com o momento que estamos vivendo. Lembram da nossa discussão sobre O Pequeno Príncipe? Sinto a mesma coisa. Cada leitura, uma compreensão diferente.

Cris disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
A disse...

Vou me meter aqui nos comentários pra concordar xD é também gosto da poesia do Drummond, e gosto de reler pra pegar algum ponto que talvez tenha escapado e ficar uns dias com a poesia na cabeça pra analisar.

Bjo,att